Por RUY CASTRO
“Grupo dos Cinco”: Anita Malfatti, Mario de Andrade, Menotti del Picchia, Oswald de Andrade e Tarsila do Amaral |
No dia 19 de junho de 1924, desembarcaram na Estação D. Pedro II, vindos de São Paulo, os modernistas Mário de Andrade, Menotti del Picchia, Guilherme de Almeida, Candido Motta filho e Cassiano Ricardo. Foram recebidos por seus colegas Ronald de Carvalho, Manuel Bandeira, Ribeiro Couto, Alceu Amoroso Lima, Sergio Buarque de Holanda, Murillo Araujo, Prudente de Moraes Neto, Paulo Silveira e o quase adolescente Augusto Frederico Schmidt e se dirigiram em turma à sessão daquela tarde na Academia Brasileira de Letras, na avenida Presidente Wilson. Iam prestigiar seu mentor e líder, Graça Aranha, que já lhes adiantara o tema da conferência que pronunciaria para os colegas acadêmicos. O discurso de Graça, intitulado “O espírito moderno”, seria uma declaração de guerra ao passadismo. Rumores de que tal aconteceria chegaram aos ouvidos de membros da Academia. Talvez por isso, a sessão, iniciados os trabalhos, contasse com 28 expectantes acadêmicos em plenário.
Pois não expectaram em vão. Em vários momentos de sua fala, Graça Aranha disse coisas que eles nunca esperavam ouvir. “A Academia será uma casta de imortais em um país de imemoriais?”. “A fundação da Academia foi um equívoco e foi um erro.” “Somos excessivamente quarenta imortais, consagração exagerada para tão pequena literatura.” “Tudo vive espiritualmente. Só a Academia traz a face da morte.” E, quando eles esperavam que fosse parar por aí, Graça Aranha soltou a munição final. Tachou a Academia de “uma reunião de espectros”, “um túmulo de múmias", “um império de todas as velhices". E fulminou: “Se a Academia não se renova, morra a Academia”.
Um eco subiu em coro da plateia: “Morra!” Eram os modernistas, secundando Graça Aranha. Em seguida, vinda das mesmas bocas, outra sentença de morte: “Morra a Grécia!” — a princípio, incompreensível, já que a Grécia estava quieta no seu canto. Mas eles a identificavam com os parnasianos e naturalistas que ainda existiam na praça, respirando por aparelhos, e que era preciso exterminar. Os acadêmicos, chamados de múmias, reagiram, gritando vivas à Academia. Instalou-se o distúrbio e, em meio a ele, os corpulentos Alceu Amoroso Lima e Augusto Frederico Schmidt puseram Graça Aranha nos ombros e o desfilaram em triunfo pelo salão. Dois partidários da Academia, os irmãos Rafael e Marques Pinheiro, retaliaram levantando o minúsculo Coelho Netto e também o desfilando. Netto aproveitou-se de estar pela primeira vez fisicamente nas alturas e proclamou: “Eu sou o último dos helenos! Eu sou o último dos helenos!” — numa tentativa de desagravar a ofendida Grécia.
Foi, talvez, a sessão mais incendiária na história da Academia. O rescaldo do alvoroço, no entanto, permitiu pensar melhor. Se a fundação da Academia fora um erro, Graça Aranha era um dos culpados, porque, em 1897, estava entre seus quarenta fundadores — com o agravante de ser o único, contrariando os estatutos, a não ter livro publicado. Só foi aceito porque o fiador de sua indicação, seu mestre Joaquim Nabuco, garantiu que ele tinha um romance no bolso, e o contista Lucio de Mendonça, encarregado da criação da Academia, estava com dificuldade para preencher as quarenta cadeiras. A de Graça Aranha foi a de nº 38.
Mas Graça não os decepcionou. Em 1902, Nabuco anunciou que ele acabara de publicar pela Garnier, em Paris, um romance único na literatura brasileira: Canaã, uma saga do contraste entre a civilização e a selva, o imigrante e o nativo, o Velho e o Novo Mundo. Um romance de ideias, como nunca se fizera aqui. Os acadêmicos o leram e deram razão a Nabuco — Canaã era mesmo uma revolução. Nem a publicação de Os Sertões, de Euclydes da Cunha, naquele mesmo ano, e a de Pelo Sertão, de Afonso Arinos, quatro anos antes, conseguia ofuscá-lo — ao contrário, os críticos viram nesses três livros o Brasil profundo que estava sendo descoberto. Um dos admiradores mais contundentes de Canaã, José Veríssimo, escrevendo antes de pensar, colocou-o acima de qualquer coisa de Machado de Assis. O público também se entusiasmou, garantindo-lhe uma venda de quase 3 mil exemplares por ano. E só muito depois o livro começou a acusar seus defeitos: narrativa emperrada, atufada de ideias, e personagens que falavam muito mas agiam pouco e estavam mais preocupados em posar para o leitor do que em viver de verdade a história. Mas, em 1924, isso não tinha mais importância — Canaã já entrara na corrente sanguínea da nação. Donde o rompimento do mesmo Graça Aranha com a Academia Brasileira de Letras equivalia a remover uma das colunas do Petit Trianon — como o teto iria se sustentar?
A destruição da Academia era uma das obsessões dos modernistas de São Paulo, juntamente com a chacina dos poetas parnasianos, com seus sonetos folheados a ouro, e de figuras como Coelho Netto, cuja abundância verbal, colocação de pronomes e exorbitâncias retóricas simbolizavam a ditadura do século XIX sobre a literatura brasileira. Toda a Semana de Arte Moderna, realizada dois anos antes, se escorara sobre essas fixações. Na realidade, os rapazes não precisavam ter se dado a tanto trabalho. No Rio, tudo aquilo já era passado, e não era de então.
A Academia estava habituada a ser tratada sem condescendência pelos intelectuais cariocas. Agrippino Grieco a chamava de “morgue literária” e definia as sucessões acadêmicas, provocadas pela morte de um membro, como “um defunto na vaga de outro”. E ainda sugeria: “Porque não aproveitam os fardões dos acadêmicos mortos como pano de mesa de bilhar?”. Agrippino disse também que deixaria de doar para presídios os livros que recebia de certos acadêmicos — “Era como punir os presos duas vezes”. Outro rebelde, Paulo Silveira, vivia vergastando-a — chamava-a de Epidemia Brasileira de Letras. Gabava-se de não saber sintaxe (era mentira; sabia, sim) e pensava em oferecer à língua uma antigramática, A arte de descolocar pronomes. Paulo Silveira nunca escreveu esse livro, mas, em outro, que publicou em 1926 — Asas e patas, uma coletânea de seus artigos de jornais, pela Costallat & Miccolis —, estendeu suas iconoclastia a toda a literatura nacional e descarregou diatribes que Oswald de Andrade assinaria. Segundo ele, Gonçalves Dias, “para felicidade geral da nação, não sabia nadar” (o poeta de “Canção do exílio” morreu afogado); o historiador Capistrano de Abreu era “um lambão”; e Euclydes da Cunha, “um escritor português aclimatado ao Brasil”. Paulo Silveira também nunca poupou Coelho Netto, que descreveu como “uma enorme adega cheia de garrafas vazias” e em quem sapecou o apelido — depois apropriado por Oswald — de “Coelho Avô”.
O pobre Coelho Netto havia muito vinha sendo decomposto como estilista. Seu próprio colega de Academia Medeiros de Albuquerque já o chamara de “o último grande escritor português do Brasil”. João do Rio, em vida, não lhe dirigia a palavra durante as sessões. E até Patrocínio Filho, de cujo pai, o velho Patrocínio, Netto fora grande amigo, rotulou-o de “a negação mais completa da literatura no Brasil” e de “uma máquina Remington a quem o destino deu corda”.
Quando os modernistas escreveram que era preciso “descoelhonetizar” o Brasil, estavam apenas revelando sua desinformação. Podem ter sido influenciados por Menotti del Picchia, que, recém-chegado a São Paulo, vindo de Itapira, em 1920, e sem conhecer nenhum escritor fora do círculo futurista, metralhava pelo Correio Paulistano todos que não fizessem parte desse círculo. Menotti não sabia que, no Rio, muito antes de 1922, Coelho Netto já estava para a literatura como Catullo da Paixão Cearense para a música popular e Santos-Dumont para o avião. E estava também longe de ser um modelo de estilo. Naquela época, homens de todas as correntes e tendências, como Lima Barreto, Manuel Bandeira, Ronald de Carvalho, Jackson de Figueiredo, Antonio Torres, Tristão de Athayde, Humberto de Campos, Agrippino Grieco, e mulheres como Julia Lopes de Almeida, Carmen Dolores ¹ e Chrysanthème ², publicavam em jornais textos que, reunidos em antologias quase cem anos depois, não denunciariam sua idade. E Orestes Barbosa, Benjamim Costallat e Alvaro Moreyra já escreviam, em 1920, no então chamado estilo sincopado ou picadinho — parágrafos de uma só frase, flashes rápidos, telegráficos —, que, depois, o modernismo lançaria como novidade.
Donde o único que precisava “descoelhonetizar-se” era o próprio Coelho Netto, e até ele tinha certa consciência disso. Numa entrevista ao jornal A Rua, em 1914, admitiu que realmente exagerava ao escrever e iria debruçar-se sobre sua obra para “podá-la” — desbastá-la dos “excessos de adjetivação meridional”, como disse. “Passei a minha vida literária absorvido pela abundância, pelo delírio do adjetivo”, confessou. “Preocupei-me mais com a roupagem do manequim e esqueci-me da anatomia do ser. Obumbrei-me do adjetivo e esqueci-me do substantivo.” Mas se Coelho Netto chegou a fazer isso — desobumbrar-se —, não houve registro ou ninguém notou a diferença e, seja como for, ninguém se importou. A maioria dos escritores estimava Coelho Netto como pessoa, sem precisar ler seus livros ou admirá-los. Humberto de Campos, em seu Diário secreto, arrasou seu romance Bazar: “Lugares-comuns, frases feitas, páginas sem relevo, sem interesse”. E o público logo também começaria a abandoná-lo. Em poucos anos, Coelho Netto seria apontado nas ruas, não mais como uma eminência da literatura, mas como o “pai do Preguinho”, meia-esquerda do Fluminense e da seleção e, em 1930, autor do primeiro gol brasileiro numa Copa do Mundo.
Mesmo a “língua sem arcaísmos, sem erudição” e “a contribuição milionária de todos os erros”, preconizadas por Oswald de Andrade no seu “Manifesto da poesia pau-brasil”, publicado no Correio da Manhã em 1924, já estavam no ar havia muito. Dicionários de gíria carioca e do falar “errado” — ou seja, à maneira do Rio — não eram mais novidade. O pioneiro fora Gíria dos gatunos cariocas, o primeiro dicionário brasileiro com a palavra gíria no título, de Elysio de Carvalho, lançado pela Imprensa Nacional, em 1912. Depois, todos em 1922, saíram O linguajar carioca do linguista Antenor Nascentes; Geringonça carioca — Verbetes para um dicionário da gíria, de Raul Pederneiras; e o glossário de gíria em Ban-ban-ban, de Orestes Barbosa. O livro de Pederneiras continha 2400 verbetes, de “abacaxi — assunto ou negócio pesado, exaustivo ou prejudicial” a “zum-zum — boato, intriga, diz que diz, mexerico”. O de Orestes continha gírias que atravessariam o século, como “afanar”, “dar o beiço”, “enrustir”, “fuleiro”, “néris”, “pivete”. Aos poucos, esse rico refugo verbal começaria a ser incorporado à literatura, à poesia, ao teatro, à música popular e, claro, à língua.
Tudo isso estava acontecendo à revelia de Graça Aranha, cuja inesperada adesão aos futuristas em 1921 intrigou apenas os que tomaram conhecimento dela. Humberto de Campos censurou-o por se deixar “cercar por iniciantes que poderiam ser seus netos” — o que era um exagero, porque se, em 1924, Graça estava com 56 anos, Mario de Andrade já tinha 31, Oswald de Andrade, 34, e Manuel Bandeira, 38. Agrippino Grieco, que assistira divertido à folia do discurso na Academia, nunca acreditou na sinceridade dessa adesão: “Graça Aranha posa de revolucionário, mas vive de dieta. Revolução e dieta não combinam”. E nem a Academia, que Graça atacara com tanta ênfase, pareceu se ofender. No dia seguinte, numa sessão extra, que teve o acadêmico Mário de Alencar como orador oficial, ela o convidou a fazer as pazes e continuar em seus quadros.
Mas Graça Aranha ficou firme. Os jovens o tinham acolhido como seu chefe na Semana de Arte Moderna. A revista Klaxon lhe dedicara um número inteiro, o de dezembro de 1922-janeiro de 1923, em que o chamara de “mais moço que qualquer um de nós, alma sensível, espírito universal, cérebro de artista e de filósofo, químico do sonho brasileiro”. E, antes disso, Menotti del Picchia já o promovera a “espírito mais fúlgido da raça”. Não seria agora que ele iria traí-los. E uma coisa era insultar a Academia pelo lado de fora, como todo mundo fazia. Outra era insultá-la do seu próprio púlpito, tendo lauréis e fardões a perder.
Talvez por isso, pelo inusitado da atitude e pelo peso de seu nome, o gesto de Graça Aranha no Rio tenha tido repercussão nacional. E só então o país foi informado de que os futuristas haviam chegado.
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Dois anos haviam se passado desde a Semana de Arte Moderna, realizada em ferreiro de 1922, em São Paulo, e praticamente ninguém de fora da capital paulista soubera que ela acontecera. Na época, nenhum jornal carioca a noticiou — não porque não quisesse, mas por não ter sido informado dela pelas agências de notícias. E, como eles eram os únicos jornais de alcance nacional, o país ficou sem tomar conhecimento. As revistas semanais também não tocaram no assunto, com exceção de um registro em Para Todos... — porque seu diretor, Alvaro Moreyra, se considerava parte da turma. O alcance da Semana foi estritamente local e, também lá, limitado. O Estado de S. Paulo praticamente a ignorou, a Folha da Manhã criticou negativamente os saraus, e só o Correio Paulistano soltou foguetes. Mas o Correio Paulistano tinha como redator político (na prática, editor) Menotti del Picchia, o polemista oficial do futurismo. Era também o jornal oficial do PRP, o partido do poder — seus editoriais eram submetidos a seu comandante, o governador do estado, Washington Luiz, de quem Del Picchia era ghost-writer. E Washington Luiz, por sua vez, era amigo de Oswald de Andrade, por seus laços com a elite do café, à qual Oswald pertencia.
Uma das bandeiras dos futuristas, a luta contra os poetas parnasianos, não tinha muita razão de ser no Rio. Na São Paulo de 1922, ela se justificava, porque o parnasianismo era o estilo dominante, com Vicente de Carvalho, Francisca Julia e Martins Fontes pairando sobre a cidade. Era também o estilo de que os jovens que até havia pouco o tinham praticado, como Guilherme de Almeida, Menotti del Picchia e Mario de Andrade, tentavam se livrar. No Rio, a superação dos maiores nomes do estilo, Olavo Bilac e Alberto de Oliveira, já tinha sido literalmente proposta pelo crítico João Ribeiro: “São grandes poetas, mas de seu tempo. É preciso aposentá-los”, ele escreveu em 1905. O Rio, naquele ano, já fora tomado pela insurreição simbolista — a dos poetas que, desde 1893, discípulos de Mallarmé, Verlaine e Rimbaud criaram uma alternativa sonora e humanista à estética escultórica e gelada dos parnasianos.
Em 1922, o Rio estava na terceira geração de simbolistas. Os primeiros, na virada do século, tinham sido Cruz e Souza, Emiliano Pernetta e Alphonsus de Guimaraens. Nas duas primeiras décadas, o bastão passara às mãos de Hermes-Fontes, Da Costa e Silva, Ronald de Carvalho, Felippe d'Oliveira, Marcello Gama, Andrade Muricy, Tasso da Silveira, Alvaro Moreyra, Gilka Machado e Rodolpho Machado. No pós-guerra, ficara a cargo de Ribeiro Couto, Cecilia Meirelles, Murillo Araujo, Duque-Costa, Renato Almeida. Vindos de vários estados do Brasil, eles fizeram do Rio a sua base e logo ocuparam revistas — não as de literatura, que ninguém lia, mas as comerciais, de grande circulação, como Fon-Fon! e Para Todos... Era nelas que publicavam seus poemas, sinal de que tinham aceitação junto ao público.
E havia poetas como Mario Pederneiras, Augusto dos Anjos e Manuel Bandeira, diferentes de todo mundo e diferentes entre si — Pederneiras, o suave desbravador do verso livre; Dos Anjos, com sua temática grotesca e profanadora; e Bandeira, o primeiro a trazer a poesia para a rua, que era o lugar dela. Sem falar em Raul de Leoni, morto aos 31 anos, em 1926, amigo deles e admirado por seu único livro, Luz mediterrânea, de 1922 — um caso quase único de parnasiano-simbolista, com a cabeça em Leconte de Lisle e a alma em Mallarmé.
Os parnasianos, naturalmente, continuavam na praça e monopolizando certos mercados, como os discursos de sobremesa nos banquetes e os saraus de declamação nos salões elegantes. Mas já sem o peso de antes. A morte de Emilio de Menezes e de Olavo Bilac, ambas em 1918, os privara (e ao Rio) de dois de seus nomes mais queridos — Bilac, pela generosidade com que se dava a todo mundo, e Emilio, pelo humor que esbanjava nos cafés. Prova disso é que, desde 1910, quem vinha regularmente de São Paulo para lhes beijar as mãos e acompanhá-los pelo circuito boêmio era o noviço Oswald de Andrade. Em troca, eles o acolheram na Sociedade Brasileira dos Homens de Letras, uma espécie de filial mais informal da Academia, e cujas reuniões se davam no Café Papagaio. Bilac e Emilio também iam a São Paulo para participar de saraus parnasianos remunerados no Conservatório Dramático e Musical, a convite de Oswald, que os promovia com ardor em seu jornal O Pirralho.
Oswald fora grande admirador de Olavo Bilac, mas sua principal identificação havia sido com Emilio de Menezes, de quem se dizia discípulo e com quem tinha em comum, além dos olhos verdes e vários queixos duplos, uma incontrolável disposição para disparar trocadilhos. A amizade entre eles está bem documentada. Numa carta para Emilio, em 1913, Oswald escreveu: “Emilio, quero viver muito tempo para que, velho, passando pela tua estátua, eu possa dizer aos moços que te conheci de perto, e explicar que, homem, eras ainda maior que o poeta. A glorificação que trarão os teus versos será bem mesquinha, decerto, por maior que seja, ao lado dos templos que se irão erguer para o teu culto no coração dos teus amigos”.
Infelizmente, nada disso se concretizou para Emilio de Menezes — nem estátua (no máximo, um busto no largo do Machado), nem glorificação, nem templos. O próprio Oswald o repudiaria anos depois, chamando-o de “palhaço da burguesia”. E, no entanto, pode ter sido em Emilio, inventor do soneto-piada, que Oswald se inspirou para criar, em 1925, os poemas-piada, que acabariam por caracterizar o modernismo — em pouco tempo, já não haveria poeta que, pela facilidade, não os produzisse às dúzias.
O Rio literário era cordial e comportava todas as escolas. Assim, cada poeta carioca ligado aos de São Paulo encontrou a sua forma particular de “modernismo”, nem sempre obediente aos cânones. Ronald de Carvalho, a quem desagradava o rótulo “futurista”, foi o mais radical. Sua longa temporada nos Estados Unidos, no México e nas Antilhas, em 1923, a serviço do Itamaraty, escancarou-lhe uma América — do Norte, Central e do Sul — que ele não imaginava existir. Para um intelectual de formação tão europeia, o impacto não foi pequeno. Outros podem tê-lo tido. Mas, no Brasil, só ele o botou na página.
Ronald, que já praticara diversos metros e combinações de rimas, entregou-se ao seu próprio mandamento: “Cria o teu ritmo livremente”. O ritmo de Toda a América, o livro que ele trouxe dessa viagem e lançou em 1926, era um trem desgovernado, uma poesia sem freio, “mural e, ao mesmo tempo, orquestral e arquitetônica”, segundo Peregrino Junior. Os versos só faltavam transbordar da página, levando na enxurrada o que viam pela frente — desertos, pampas, cordilheiras, praias e metrópoles —, com destreza de poeta, ecos de Walt Whitman e velocidade de cinema: “Europeu/ Filho da obediência, da economia e do bom senso/ Tu não sabes o que é ser americano.// Europeu!/ Nessa maré de massas informes, onde as raças e as línguas se dissolvem/ O nosso espírito áspero e ingênuo flutua sobre as coisas/ Sobre todas as coisas divinamente rudes/ Onde boia a luz selvagem do dia americano”.
Todo o livro era uma exaltação, inclusive das mazelas do continente: “América violenta, do cavalo selvagem do caudilho, do punhal dos generais, da fogueira dos linchamentos, dos imperadores banidos, dos Presidentes degolados/ [...]/ América dos barões e dos escravos, do ladrão e do capitão-mor, do santo e do herói”. E, numa rara referência pessoal, citando seu pai, mandado fuzilar por Floriano Peixoto na Revolta da Armada, em 1894: “Eu vivo todas as tuas indisciplinas, a tua cultura, a tua barbárie, as tuas pirâmides e os teus arranha-céus/ As tuas pedras de sacrifício e os teus calendários, os teus pronunciamentos e a tua boa-fé puritana./ América livre do terror/ América dos meus avós guerreiros e construtores/ América do meu pai, que morreu pelo Rei”.
No mesmo ano, fora do comércio, Ronald publicou Jogos pueris, seu último livro de poesia — apenas quarenta exemplares, quarenta objetos únicos, ilustrados em cores um a um, à mão, por um artista que se assinava Nicola de Garo, o mesmo que já fizera a modestíssima capa marajoara de Toda a América. De Garo era o pseudônimo italiano de um jovem artista plástico búlgaro, Nicolai Abracheff, de passagem pelo Brasil naquela época. De passagem, mas não perdido. Nos poucos anos que levou aqui, Abracheff foi à Amazônia, onde descobriu a estética marajoara, esteve em Pernambuco, com Gilberto Freire, em São Paulo, com Mario de Andrade, e, no Rio, com Ronald, que lhe deu os dois livros para ilustrar. Jogos pueris tinha 24 páginas e parecia um livro para crianças, daí o título e as cores berrantes dos desenhos. Só a poesia contida nele era adulta, sonora, imagética — como no poema que começa com “Cheira a mar! Cheira a mar!”, e em que Ronald fala do “ouro da areia molhada”, do “aço das tainhas”, do “chiar da espuma” e do “olho gelatinoso das lulas flexíveis”. Ou, quem sabe, talvez não fosse assim tão adulta. Talvez, para Ronald de Carvalho, a poesia devesse ter também algo de lúdico, infantil — pueril —, contra a seriedade até dos que queriam transformá-la.
Não é que o Rio tivesse um modernismo à sua maneira. O Rio era apenas moderno. Embora concordassem no geral, nem sempre as turmas das duas cidades, Rio e São Paulo, estavam de acordo. Ribeiro Couto e Manuel Bandeira, os articuladores da Semana de Arte Moderna no Rio, recusaram-se a ir a São Paulo para o evento, por não concordarem com os ataques de seus colegas ao soneto e à poesia rimada e metrificada. Não que quisessem continuar a praticá-los — apenas não aceitavam a tábula rasa a que Menotti del Picchia e Oswald de Andrade queriam reduzir o passado.
Uma variante particular do modernismo no Rio era sua ala “espiritualista”, composta de poetas vindos do simbolismo e agrupados, em 1927, na revista Festa. Os principais era Andrade Muricy, Cecilia Meirelles, Tasso da Silveira, Murilo Araujo, Adelino Magalhães, Gilka Machado, Brasilio Itiberê, Augusto Frederico Schmidt, Murilo Mendes, Jorge de Lima, o jovem Carlos Drummond de Andrade, eventualmente Ribeiro Couto. Eles era católicos, politicamente conservadores e admiravam a liberdade formal que o modernismo trouxera, mas não dispensavam o sentimento. Tinham a ligá-los também a oposição ao piadismo que começava a tomar a poesia brasileira. O nome da revista fora tirado do romance A festa inquieta, de Muricy, lançado um ano antes, “um painel sinfônico”, proustiano, do subconsciente, segundo os críticos.
O fato de serem católicos não era um empecilho para se entenderem com São Paulo, porque Mario de Andrade e Oswald de Andrade também eram, e até mais. Segundo seu biógrafo Jason Tércio, Mario era membro praticante de irmandades severas, como a Conferência Vicentina e a Congregação da Imaculada Conceição. Confessava-se regularmente, rezava todos os dias, ao dormir e ao acordar, e não admitia a crença em Deus sem essa prática ativa. Oswald, segundo sua biógrafa Maria Eugenia Boaventura, também era frequente em novenas e ladainhas. Mandava rezar missas por promessas cumpridas ou a cumprir, era devoto de Nossa Senhora Aparecida (andava com sua imagem no bolso) e participava de romarias a Aparecida do Norte e a Bom Jesus de Pirapora. A carolice de Oswald, que lhe veio dos pais na infância, prolongou-se por sua vida adulta, inclusive na fase da antropofagia. E, mesmo tendo se afastado da Igreja em certos períodos, nunca perdeu a fé. Os dois, Mario e Oswald, deram testemunhos dessa fé por escrito. Na última página da edição original do mariano Pauliceia desvairada, de 1922, lê-se, em negrito, itálico e corpo maior do que o do título na capa, a expressão Laus Deo!, com exclamação. E, na última página do oswaldiano Pau Brasil, de 1925, a mesma coisa — um Laus Deo em corpo menor, redondo e sem exclamação. Mas com igual significado: Louvado seja Deus.
O conservadorismo político também não seria motivo para afastar os cariocas de Festa dos líderes paulistanos. Na madrugada de 5 de julho de 1924 — duas semanas depois do discurso de Graça Aranha na Academia —, um regimento do 4º Batalhão da Força Pública de São Paulo, comandado pelo major Miguel Costa, rebelou-se no quartel do bairro da Luz, com a adesão dos tenentes e de outros oficiais do Exército sob a liderança do general Isidoro Dias Lopes. Exigiam a renúncia do presidente Arthur Bernardes e do novo governador de São Paulo, Carlos de Campos, a eleição de uma Assembleia Constituinte e a implantação do voto secreto no país. Era de novo o espírito do Forte de Copacabana e dos tenentes de 1922 contra a república do café com leite, só que agora no seu principal reduto — São Paulo — e com protagonistas locais.
Os rebeldes tomaram os pontos estratégicos, armaram barricadas e ocuparam a cidade. O palácio do governo nos Campos Elísios foi atacado por canhões postados no Campo de Marte, teve a eletricidade cortada e podia ser invadido a qualquer momento. Isso determinou a fuga dos ligados à ordem que se queria derrubar. Carlos de Campos deixou o palácio e refugiou-se no bairro da Penha. Washington Luiz escondeu-se em Itapetininga, no sul do estado, acompanhado por Menotti de Picchia. Oswald de Andrade e Tarsila do Amaral, que se casariam dois anos depois, tendo Washington Luiz como padrinho, foram para a Fazenda Sertão, em Indaiatuba — uma das 22 fazendas da família da pintora. Paulo Prado, patrono da Semana, d. Olivia Guedes Penteado, hostess do movimento, e os demais próceres do modernismo também foram para suas fazendas. Fizeram bem porque, para retomar São Paulo dos rebeldes, Arthur Bernardes mandou tropas com metralhadoras, tanques e aviões de combate. Houve choques armados, incêndios e casas destruídas nas Perdizes, no Brás, na Mooca e em outros bairros. A cidade foi bombardeada por 23 dias. Mario de Andrade, simpatizante do Partido Democrata — uma opção que se ensaiava ao PRP —, ficou em São Paulo, em casa, sem sair, ao lado da mãe e das irmãs, com quem morava na rua Lopes Chaves.
No dia 28 de julho, sob pesado ataque das tropas federais, os rebeldes finalmente capitularam. Os sobreviventes fugiram para a fronteira com o Paraná, onde se reuniram às tropas gaúchas do capitão Luiz Carlos Prestes e, juntos, formaram a Coluna Prestes, que percorreria o país. Bernardes instituiu a censura à imprensa — entregue a Jackson de Figueiredo — e prendeu o paulista Julio de Mesquita, de O Estado de S. Paulo, e os cariocas Edmundo e Paulo Bittencourt, do Correio da Manhã, José Eduardo de Macedo Soares, de O Imparcial, Renato de Toledo Lopes, de O Jornal, Diniz Junior, de A Pátria, Ozeas Motta, de A Vanguarda, José Oiticica, de A Plebe, Orestes Barbosa, de A Notícia, e os diretores das agências United Press e Associated Press.
A república do café com leite, mais uma vez, triunfara. Mario pôde sair à rua. Oswald, Tarsila, Menotti e os demais voltaram aliviados para São Paulo. Nenhum deles escreveu sobre o que acabara de se passar — assim como nunca escreveram em 1922 sobre os dezoito do Forte e não escreveriam depois sobre a Revolução de 1930. Não que fossem alienados. Eles eram a república do café com leite. [...]
Fonte: capítulo 10 de METRÓPLE À BEIRA-MAR: o Rio moderno dos anos 20 por Ruy Castro, pp. 255 a 267.
II. NOTAS EXPLICATIVAS pelo Gerente do Blog
¹ Carmen Dolores é o pseudônimo da romancista, contista e jornalista Emília Moncorvo Bandeira de Melo (1852-1910), mãe de Chrysanthème. Assumiu, em O Paiz, a coluna de crônicas de Machado de Assis. Dentre a sua produção, destaca-se o livro de contos Um drama na roça (1907).
² Chrysanthème (Rio de Janeiro, 8 de fevereiro 1869 - 22 de agosto de 1948), pseudônimo de Cecília Moncorvo Bandeira de Mello Rebello de Vasconcellos, foi uma escritora, jornalista e feminista brasileira. Um dos nomes da escrita de mulheres no início do século XX, e pioneira das causas feministas, publicou mais de vinte livros. Entre seus livros está A infanta Carlota Joaquina (1936), no qual procura contestar o retrato tradicional da rainha luso-brasileira como uma megera. Em sua época, Chrysanthème foi uma figura pública, em especial por suas crônicas na imprensa.
III. BIBLIOGRAFIA
CASTRO, Ruy: METRÓPLE À BEIRA-MAR: o Rio moderno dos anos 20, São Paulo: Companhia das Letras, 2019, 494 p.
7 comentários:
Francisco José dos Santos Braga (compositor, pianista, escritor, tradutor, gerente do Blog do Braga e do Blog de São João del-Rei) disse...
Prezad@,
O Blog de São João del-Rei tem o prazer de apresentar a visão do jornalista, biógrafo e escritor RUY COSTA sobre a década que vai do Carnaval de 1919 à Revolução de 1930. Mais precisamente, no capítulo 10 do livro, intitulado APENAS MODERNOS, ele retrata a ida dos modernistas e futuristas paulistas em 1924 ao Rio de Janeiro e sua visita tumultuada à Academia Brasileira de Letras.
TEXTO: APENAS MODERNOS
Link: https://saojoaodel-rei.blogspot.com/2024/12/apenas-modernos.html
BREVE NOTA BIOGRÁFICA DO AUTOR
Link: https://saojoaodel-rei.blogspot.com/2024/12/colaborador-ruy-castro.html
Cordial abraço,
Francisco Braga
Gerente do Blog de São João del-Rei
Pedro Rogério Moreira (jornalista e sócio da Gracián Telecom, cronista e memorialista brasileiro) disse...
Muito obrigado, mestre Braga. Desejo-lhe um novo ano de saúde, trabalho e alegrias.
Raquel Naveira (membro da Academia Matogrossense de Letras e, como poetisa publicou, entre outras obras, Jardim Fechado, antologia poética em comemoração aos seus 30 anos dedicados à poesia) disse...
Caro Professor Francisco Braga,
Gostei muito do ensaio de Ruy Costa mostrando esses conflitos dentro da ABL: conservadores, futuristas, modernistas, várias correntes de pensamento e postura diante da vida e da literatura.
Aproveito para desejar-lhe um Feliz 2025 com Saúde, Paz e Realizações.
Abraço fraterno,
Raquel Naveira
Parabéns, Francisco Braga. Muita informação... Vou procurar e adquirir, imediatamente, o livro de Ruy Castro, tão essencial, quanto necessário a todos os que militam na área. Ruy é, enfim, um repositório de informações, um baú de memórias. A ambos e ao blog, o meu muito obrigado. GERALDO REIS: O SER SENSÍVEL,.
Heitor Garcia de Carvalho (graduado em Pedagogia pela Faculdade Dom Bosco (1968), mestre em Educação UFMG (1982), Ph.D em Educational Technology - Concordia University (1987 Montreal, Canada); MBA Gestão Tecnologia da Informação, Fundação Getúlio Vargas (2004); pós-doutorado em Políticas de Ensino Superior na Faculdade de Psicologia e Ciências da Informação na Universidade do Porto, Portugal (2008); professor associado do CEFET-MG) disse...
Obrigado pelo envio do texto!
Não é uma história da literratura, é uma enciclopédia!
Dr. Rogério Medeiros Garcia de Lima (professor universitário, desembargador, ex-presidente do TRE/MG, atual Terceiro Vice-Presidente TJMG, escritor e membro do IHG-MG e membro do IHG e da Academia de Letras de São João del-Rei) disse...
As academias viraram um antro de identitarismo...
Abs
Gerson Valle (poeta e escritor; membro do conselho editorial do jornal literário Poiésis (Petrópolis, RJ) disse...
Meu caro: Parabéns pelo blog, que sempre leio com prazer. No entanto, sinto pena de que tantos bons textos sejam proibidos de maior divulgação. Este aqui especialmente eu gostaria de divulgar, dando-lhe os créditos evidentemente, no facebook, aonde mantenho correspondentes cultos, inteligentes. Não há mesmo como fazê-lo? Dommage... Um abraço do Gerson Valle.
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