terça-feira, 12 de setembro de 2017

O HOLOCAUSTO E AS CANÇÕES DO GUETO


Por Samuel Belk



Este trabalho apareceu originalmente in Il Girasole: Bollettino informativo e culturale della Scuola Italiana  «Eugenio Montale», Anno 7, nº 15, Dicembre 2009, p. 12-3.  *



Hitler e Goebels promoveram a doutrina nazista, cujo objetivo era propagar a idéia de uma raça pura, da qual os alemães seriam descendentes e transformando como alvo principal os judeus que representariam, numa escala decrescente, uma raça inferior. 

Na década de 30, os nazistas iniciaram as primeiras discriminações contra os judeus alemães, afastando professores das universidades, proibindo-os de exercer funções públicas, exercer atividades comerciais, profissões liberais, inclusive a medicina, e ainda de frequentar lugares públicos, manter telefones e rádios em suas residências e outras consideradas inimagináveis para um país civilizado e em pleno século XX. 

Em 15 de novembro de 1935 foram editadas as Leis de Nuremberg, que proibiam os judeus de realizar matrimônios com alemães a fim de preservar a "pureza do sangue ariano". A transgressão era punida com a morte. Todos os estabelecimentos judeus foram confiscados e entregues a comissários alemães, privando-os assim de toda e qualquer sustentação econômica. 

Por volta de 1938, membros das SS e grupos nazistas deram início a uma série de "pogroms" em toda a Alemanha, com incêndio de sinagogas, casas comercias, depredação e saque de residências judaicas, prisões e segregação de judeus em guetos. Foram destruídas cerca de 7.500 lojas e fábricas no que resultou em 90 mortes e centenas de feridos. Nesta ocasião milhares de judeus conseguiram emigrar, mas não puderam levar nenhum de seus bens, despojados que foram pelos alemães, tendo emigrado com a coragem e a roupa do corpo. 

No dia 1º de setembro de 1939 eclodiu a Segunda Guerra Mundial, como parte do plano de expansão da Alemanha e de domínio do mundo, projeto de um psicopata do qual até então os países europeus não tinham tomado conhecimento. Os nazistas iniciaram seus primeiros ataques contra a Polônia. Uma semana antes, a Alemanha tinha assinado um pacto de não agressão com a União Soviética, onde ficou firmado que a Polônia seria dividida entre os dois parceiros. 

Após a agressão à Polônia e, quando se deram conta da queda deste país e seu significado, a França e a Inglaterra declararam guerra à Alemanha em 3 de setembro de 1939. Os nazistas tomaram sem muito esforço a Noruega, a Bélgica, a França, e logo em seguida a Bulgária, a Iugoslávia e também a Grécia. 

Em junho de 1941, a Alemanha declarou guerra à União Soviética. Imediatamente tomou posse da outra metade da Polônia e avançou em uma grande extensão do seu território tendo alcançado a cidade de Tula, situada a 25 quilômetros de Moscou. Com a dominação quase total dos países europeus, inclusive de toda a Polônia e ainda parte da União Soviética, os nazistas tomaram em suas mãos a maioria dos judeus da Europa e iniciaram progressivamente a colocar em prática seu plano sinistro de aniquilamento desta população. 

Nos países dominados, os nazistas iniciaram um verdadeiro terror contra a população judaica. Foram organizados "pogroms", com assassinatos indiscriminados, perseguições, pilhagens de bens e destruição de sinagogas. 

Logo eles começaram a concentrar os judeus em locais restritos para maior facilidade de controle. Assim criaram os guetos, em grandes cidades polonesas, em bairros paupérrimos, para onde levaram também judeus trazidos de outros países ocupados da Europa. 

A vida nos guetos tornou-se insuportável pelas precárias condições de higiene, desordem, excesso de população, falta de alimentos e de fontes de sustento. Assim, por exemplo, no gueto de Varsóvia, criado em novembro de 1939, foram concentradas 500.000 pessoas, onde cabiam somente 35.000, em condições normais de habitação.

Esta primeira fase consistiu na exploração de mão de obra escrava para a indústria nazista, além de um aniquilamento lento das pessoas através da fome, doenças, frio e simples assassinatos efetuados ao acaso. 

Numa segunda fase os judeus foram transferidos dos guetos para os Campos de Concentração. Estes eram constituídos de enormes barracões de madeira em terrenos dotados de cercas de arame farpado eletrificadas. Nesta ocasião os judeus eram despojados de suas roupas, sapatos e a maioria dos objetos pessoais, recebendo um uniforme tipo presidiário e a tatuagem de um número no braço, que servia de identificação. 

A terceira fase, conhecida como a "Solução Final", foi a transferência para os Campos de Extermínio onde as pessoas eram assassinadas mediante a utilização de gases tóxicos e incineradas em fornos crematórios.  

AS CANÇÕES DO GUETO 


De um modo geral, as canções que surgiram nos séculos XVIII, XIX e no começo do século XX podem ser classificadas como: canções de amor, pobreza, dramas pessoais, alegria, esperança por dias melhores, tragédias, costumes, emancipação da mulher, canções de ninar, perseguições sofridas e outras. 

Entretanto as canções produzidas nos guetos, no século XX, foram de temática mais restrita, uma vez que refletiam a vida limitada que os judeus aí levavam, descrevendo assuntos como: superpopulação, falta de alimentos, anormalidades, humilhações, canções sarcásticas, bem como de esperança por dias melhores. 

Este macabro programa de um poder militar organizado, numa brutal guerra contra uma população de milhões de pessoas desarmadas, é revelada em centenas de canções escritas por homens, mulheres, crianças, velhos e jovens num desesperado esforço de sobreviver. 

Assim, o que restou mesmo, foram as canções, através das quais os judeus nos transmitiram sua coragem, sua luta pela sobrevivência e seus anseios de vida.

A CONFERÊNCIA DE WANNSEE


Em 20 de janeiro de 1942 a alta cúpula nazista se reuniu em Am Gossen Wannsee, num subúrbio de Berlim, na conhecida Conferência de Wannsee, para decidir o modo operacional de implantação da assim chamada "Solução Final". O triste significado das duas palavras era simplesmente o extermínio total da população judaica, de acordo com as ordens do Führer.



A reunião não durou mais do que uma hora e meia, em seguida foram servidos drinks e almoço. “Uma íntima reunião social”, como a consideraram os chefes nazistas, destinada a fortalecer os contatos pessoais, necessários para implementação do “grandioso” programa. O termo Solução Final foi por eles utilizado como regra de linguagem, para encobrir, diante da opinião pública mundial e das próprias vítimas, os termos extermínio, assassinato ou eliminação.



De acordo com as diretrizes traçadas nesta Conferência, em setembro deste mesmo ano, os nazistas iniciaram a deportação das crianças com menos de dez anos e dos anciãos com mais de sessenta e cinco anos de idade, do gueto de Łódź, para os campos de extermínio.

Um observador do gueto de Łódź escreveu em 16 de setembro posteriormente à deportação:

“A evacuação das crianças e dos anciãos se tornou uma triste realidade. A retirada das pessoas de suas casas, filhos arrancados das mães, e pais, dos filhos, foi executada por ordem do chefe nazista Bibow. As crianças eram carregadas em carretas puxadas por cavalos. Eles nunca tinham visto cavalos de verdade e esperavam um passeio alegre.”


Muitas crianças se salvaram utilizando esconderijos. Outras foram levadas por suas mães para fora do gueto e entregues a orfanatos ou famílias polonesas, instruídas para esquecerem seus nomes judaicos e se manterem discretas. Muitas vezes eram abandonadas à própria sorte junto à porta de casas polonesas.



Este trágico acontecimento foi descrito numa canção, “Uma Criança Judia”, de autoria de Chana Weinstein, uma sobrevivente dos campos de concentração.
Chana Weinstein (☆ ca. 1899, Hrytsiv-Ukrânia ✞ 23/01/1973, Cuyahoga County, Ohio)

UMA CRIANÇA JUDIA
A Yiddish Kind


Num povoado lituano distante

In a litvish derfl vait

Há uma casa isolada.

Shteit a shtibl in a zait.

Através de uma janela pequena

Duch a fenster nit kein grois

Crianças observam a rua,

Kukn kinderlech arois,

Meninos com mentes vivas,

Ingelech mit flinke kep,

Meninas com tranças loiras,

Meidelech mit blonde tzep,

E lá junto com eles

Und tsuzamen dort mit zei

Dois olhos negros observam.

Kukn oign shvartse tsvei.



Olhos negros cheios de charme,

Shvartse oign ful mit chein,

Tem um nariz pequeno,

Hot a nezele a klein,

Lábios prontos para beijar,

Lipelech tzum kushn nor,

Cabelos pretos e ondulados,

Shtark gelokte shvatze hor,

A mãe o trouxe aqui

S’hot di mame im gebracht

Envolto na escuridão da noite,

Aingeviklt in der nacht,

Beija-o fortemente e lamenta,

Shtark gekusht un geklogt,

Ela lhe diz baixinho:

Shtilerheit tzu im gezogt:



Aqui meu filho, será tua morada,

Do main kind, vet zain dain ort,

Preste atenção na palavra de tua mãe

Her je tzu dain mames vort

Eu te escondo aqui, porque

Ich bahalt dich do derfar,

Sua vida se acha em perigo,

Vail dain lebn drot gefar,

Brinque tranqüilo com estas crianças,

Mit di kinder shpil zich fain,

E permaneça quieto e comportado,

Shtil gehorchzam zolstu zain,

Nem mais uma palavra iídiche ou canção

Mer kein idish vort, kein lid

Porque você não é mais judeu.

Vail du bist nit mer kein id.



A criança pede insistentemente para ela:

Bet zich shtark dos kind bai ir

Mãe, quero somente ficar com você

Mame, ch’vil nor zain mit dir

Não me deixe aqui sozinho

Loz nit iber mich alein

A criança desaba num choro.

S’kind fargeit zich in gevein.

Ela lhe dá muitos beijos

Git zi kushn im a sach

Porém não adianta nada

Ober s’helft ir nit kein zach

A criança protesta: - não e não

S’kind nor tained: - nein un nein

Não quero ficar aqui sozinho

Ch’vil nit blaibn do alein.

Ela o toma nos braços,

In di orems nemt zi im,

E com suavidade de sua voz

Un mit veichkeit in ir shtim

Ela canta: filhinho meu

Zingt zi: ingele du main,

E assim ela o adormece,

Un zi vigt im azoi ain.

Depois disso chora à vontade

Noch dem veint zi frai zich ois

E então ela abandona a casa

Un zi tret fun shtub arois

Cheia de preocupação e medo

Ongefilt mit zorg un shrek

E desaparece no meio da noite.

Un zi geit in nacht avek.



Lá fora faz frio e venta,

Kalt in droisn un a vint,

Ouve-se uma voz: Oh! meu filho,

Hert a kol zich: oi main kind,

Deixei- te em mãos estranhas,

Dich gelost oif fremde hent,

Eu não tinha outra solução.

Andersh hob ich nit gekent.

Vai a mãe, falando sozinha,

Geit a mame, mit zich redt,

E lá fora é tarde e faz frio,

Un in droisn-kalt un shpet,

O vento lhe bate no rosto

S’veit in punem ir der vint-

“Deus, proteja meu único filho”

“Got, bashits main eintsik kind”



Casa estranha cheia de gente,

Fremde shtub mit mentshn fil,

O menino permanece mudo e quieto,

S’ingele iz shtum un shtil,

Não fala, não pede, não tem desejos,

Redt nit, bet nit, vil kein zach,

Raramente ele dá um sorriso,

Zeltn ven er tut a lach,

Não há dia e nem noite para ele,

Nit kein tog un nit kein nacht,

Não dorme e nem fica acordado.

Nit er shloft un nit er vacht.

Vasilko, um nome estranho

Vasilko, a nomen fremd

Que lhe faz doer o coração.

Oif zain hertsl drikt un klemt.



A mãe anda meio perdida,

Mame voglt vu arum,

Calada, como seu Iossele,

Vi ir Iossele oich shtum

Ninguém a conhece nem se preocupa,

Keiner veist nit, keinem art

Ela espera, espera, espera...

Un zi vart, un vart, un vart...

A Yocheved ela se assemelha,

Tsu Yocheved iz zi glaich

Que deixou Moisés no rio

Vail vi Moishe oifn taich

Sozinho, desamparado ao vento

Elnt, ainzam oifn vint

E perdeu seu único filho.

Iz farlozt ir eintzik kind.

Ouça e assista ao vídeo com "A Yiddish Kind" in https://www.youtube.com/watch?v=Nn0tvmMmS-Y  


*  Este trabalho de Samuel Belk, que foi aqui reproduzido, foi extraído de http://docplayer.com.br/1696069-Carissimi-soci-e-amici-dell-eugenio-montale.html.
 

10 comentários:

Francisco José dos Santos Braga (compositor, pianista, escritor, gerente do Blog do Braga e do Blog de São João del-Rei) disse...

Li há algum tempo, in Il Girasole: Bollettino informativo e culturale della Scuola Italiana “Eugenio Montale”, Anno 7, n. 15, Dicembre 2009, p. 12-3, um texto em português intitulado "O Holocausto e as Canções do Gueto".

Em 03/06 convidei o autor, SAMUEL BELK, a transcrever o mesmo texto no Blog de São João del-Rei. Em 30/08 recebi sua resposta, na qual não só aceitou ser colaborador, mas também recebi dele o entusiasmado incentivo para divulgar o seu trabalho "cujo assunto é muito importante".

Por isso, tenho o prazer de dar as boas vindas ao novo colaborador com os votos de que venha a colaborar com novos trabalhos que engrandecem e enriquecem o blog.

Dr. Rogério Medeiros Garcia de Lima (desembargador, escritor e membro da Academia de Letras de São João del-Rei) disse...

Muio bem!

João Carlos Ramos (poeta, escritor, ex-presidente da Academia Divinopolitana de Letras e sócio correspondente da Academia de Letras de São João del-Rei e da Academia Lavrense de Letras) disse...

Recebido.
Obrigado pela visão humanitária de Vossa Senhoria!

Prof. Fernando de Oliveira Teixeira (professor universitário, escritor e membro da Academia Divinopolitana de Letras, onde é Presidente) disse...

Muito agradecido pelo envio. Fernando Teixeira

Prof. Cupertino Santos (professor de história aposentado de uma escola municipal em Campinas) disse...

Boa tarde, professor.
Coincidentemente, há uns anos atrás, fiz um curso para professores de História na "B'nai B'rit" de São Paulo cuja temática era exatamente o das crianças judias em campos de concentração nazistas, bem como as canções e atividades artísticas que se desenvolveram ali e marcaram esse terrível drama.
Excelentes o envolvente relato de Samuel Belk e a iniciativa da transcrição do poema da canção. Muito importante mesmo a sua publicação.
Muito obrigado.

Unknown disse...

Francisco José dos Santos Braga, parabéns. Você continua garimpando no mundo da cultura e da história da humanidade e trazendo um forte enriquecimento da cultura são-joanense. Nos infla de orgulho ter o prazer de conviver com você e ler o que seu Blog publica.

Jota Dangelo (diretor, ator, dramaturgo e gestor cultural, cronista e escritor) disse...

Sinto tremores quando leio a trajetória assassina do governo nazista de Hitler, particularmente em relação à perseguição aos judeus. Belo artigo, sem dúvida e bela canção.

Dr. Alaor Barbosa dos Santos (advogado, escritor, cronista, jornalista, ex-consultor legislativo do Senado, membro do IHG do DF e da Academia Goiana de Letras) disse...

Muito bem. Parabéns.

Dr. Ozório Couto (escritor, historiador, membro do IHG-MG e redator de revista) disse...

Muito bom. Abraços. Ozório Couto

Samuel Belk (engenheiro civil e de Segurança do Trabalho; Mestre em Letras pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP; Diretor do Arquivo Histórico Judaico Brasileiro; roteirista e diretor de shows de música judaica) disse...

Há alguns anos fiz mestrado na USP. No trabalho apresentado e aprovado há muita matéria interessante que possa lhe interessar. O trabalho se acha na internet com autorização de reprodução pública.

Para acessá-lo basta digitar no Google meu nome completo: Samuel Bynem Belk.

Eng. Samuel Belk