quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

A agonia do Lenheiro


Por José Antônio de Ávila Sacramento *
“Por fim / a água escorre cada vez mais suja / a História segue o seu curso e, / com um prazer cada vez maior, / nós, Pôncios Pilatos, continuamos a lavar as mãos...”.
Uma relíquia do patrimônio natural são-joanense está na UTI. Para que se tenha uma idéia, nos nossos mais de 300 anos de história, avaliamos que o Córrego do Lenheiro permaneceu belo e praticamente limpo até o início do século passado; foi a partir do início do séc. XX, principalmente, que a poluição do córrego tornou-se um problema sério, agravando-se cada vez mais, até chegar ao estágio atual. O então Arraial Novo de Nossa Senhora do Pilar, fundado por Antônio Garcia da Cunha (o genro de Thomé Portes!) foi crescendo assim meio que desordenadamente e os esgotos foram direcionados para o leito do Córrego, sem nenhum tratamento.

Nos primórdios da Vila, certamente que a água usada na higiene pessoal, na lavagem de utensílios e os dejetos deviam de ser lançados pelas janelas das residências com a única restrição de que a dona da casa ou os escravos gritasse bem alto: "lá vem água!", a fim de se evitar que os distraídos tomassem "banhos" indesejados. Posteriormente, pelas ruas da cidade, a exemplo do que era comum, começaram a existir valas desordenadas e que cresciam meio fedorentas. Decerto que por aqui aconteceu também a imitação de hábitos da Corte pela elite são-joanense, que "importava" todos os costumes da população do Rio de Janeiro: a parte mais malcheirosa dos dejetos era colocada em penicos e jogadas em espécie de fossas sépticas, sendo que a classe menos favorecida, a maioria do povo, "fazia suas necessidades no mato mesmo".

Posteriormente, no Rio de Janeiro, os excrementos eram depositados em potes chamados "tigres", e conduzidos por escravos até às margens da Baía da Guanabara; é bem possível que os dejetos daqui também seriam lançados nos tais potes, os quais seriam carregados por escravos até às margens do Córrego do Lenheiro, onde eram lançados. Devia ser engraçada a situação dos são-joanenses daquela época, quando ao caminharem à noitinha pela Rua Direita ou Rua da Intendência, mal iluminadas por precários lampiões de azeite, temiam esbarrar naqueles escravos conduzindo os "tigres" e serem presenteados com um monte de sujeira. Vale lembrar aqui uma oportuna observação do meu amigo, confrade de IHG e historiador Antônio Gaio Sobrinho: "o termo enfezado, que hoje significa 'pessoa com muita raiva', deriva, certamente, daqueles escravos que, carregando os potes (tigres) cheios de fezes (enfezados), não deviam caminhar alegres, mas com as fisionomias aborrecidas, descontentes com aquela incômoda situação".

A indignação da população com a falta de limpeza da Cidade, como era natural que acontecesse, deve ter começado a surgir juntamente com o aparecimento de epidemias de varíola, febre amarela, cólera, etc, fato que decerto levou o povo a requisitar um serviço de limpeza mais amplo, a canalização dos esgotos e também da água. Começou, assim, a crítica história dos esgotos de São João del-Rei, com a continuação da poluição do Córrego do Lenheiro e, conseqüentemente, a do histórico Rio das Mortes.

Além de poluirmos cada vez mais o Córrego através dos esgotos, por outro lado fomos também responsáveis pela degradação da natureza que o cerca, impedindo a absorção de parte da poluição. Aterros, invasões, obras indevidas, desmatamentos, mudança do curso original da água e outros diversos fatores também ajudaram a tirar a vida do Córrego, diminuindo o nível de oxigênio de suas águas, eliminando-lhe a fauna e flora.

Os mais antigos ainda devem se lembrar do cheiro da lenha de candeia, queimada nos fogões da Rua da Prata: "lenha de primêra, freguesa!!!", anunciavam as lenheiras... A serra, nascente do Lenheiro, era coberta de candeias, finas, elegantes e desaparecidas nos fogões e fornos, tanto caseiros como de hotéis, padarias, fábricas e quartéis. Esse é o nosso passado: antiecológico, um resumo dos nossos crimes coletivos. A falta de espaço d'uma cidade "espremida" num vale, entre-serras e morros, possibilitou também que toda sorte de poluição fosse lançada ao Lenheiro, aproveitando-se da comodidade, e, também, da naturalidade da lei da gravidade.

A situação foi tomando uma forma insustentável a partir de fins dos anos 1950 e início da década de 60, até atingir aos críticos dias atuais. Com a canalização de parte do Córrego foi resolvido um problema estético, mas foi mantido um "esgoto a céu aberto". Os afluentes Rio Acima, Água Limpa e Águas Férreas foram sofrendo, cada vez mais, dos mesmos males. Anos atrás, uma verba federal de mais de meio milhão de reais foi desperdiçada pelo Poder Público Municipal num "emissário de esgotos", que de tão mal planejado e mal executado não chegou nem mesmo a amenizar o problema; e mesmo que tivesse sido diferente, com a falta de uma estação de tratamento, os esgotos continuariam sendo jogados no Córrego um pouco mais abaixo, "in natura", indo poluir o Rio das Mortes.

É necessário, pois, que as gestões em favor da despoluição (ou de se evitar a continuação da poluição) do Córrego do Lenheiro sejam efetivadas. Países como a França e a Inglaterra praticamente já despoluiram os rios Sena e Tâmisa, adotando duras leis ambientais e impostos proporcionais à degradação, além de reformulação da rede de esgotos e tratamento dos mesmos. Assim também se deu na Baía de Tóquio (Japão). Em países do Primeiro Mundo empresas poluidoras já respondem a violentos processos judiciais, com indenizações que são revertidas em favor da recuperação dos cursos d’água. No Brasil são exemplos de ações despoluidoras, ainda que tímidas, as que estão em curso nos Rios Tietê e Paraibuna. Vale mencionar o "Projeto Rio Limpo" que visa salvar a vida do Rio das Mortes, do qual o Córrego do Lenheiro é um dos poluidores.

Guardadas as devidas proporções econômicas e culturais estes são exemplos a serem seguidos antes que o histórico Córrego do Lenheiro, um dos símbolos da cidade de São João del-Rei, continue agonizando sem perspectivas de salvação.


* José Antônio de Ávila Sacramento nasceu em São João del-Rei/MG (distrito de São Miguel do Cajuru). É sócio efetivo do Instituto Histórico e Geográfico de São João del-Rei, membro efetivo da Academia de Letras de São João del-Rei, conselheiro titular do Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Cultural. Sócio Correspondente do Instituto Histórico e Geográfico de Minas Gerais (Belo Horizonte/MG). Sócio Correspondente do Instituto Histórico e Geográfico Paraibano (João Pessoa/PB). Sócio Correspondente da Academia Bauruense de Letras (Bauru/SP). Sócio Correspondente da Academia Mageense de Letras (Magé/RJ). Mais...

Fotos:
1 - Ponte da Cadeia, sobre o Córrego do Lenheiro, ornamentada com flores em razão da eleição de São João del-Rei com o título de "Capital Brasileira da Cultura 2007". Crédito: José Antônio de Ávila.
2 - Ponte da Cadeia, sobre o Córrego do Lenheiro. Crédito: Cris Carezzato

Veja mais fotos do Córrego do Lenheiro aqui.

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